A Síndrome de Maia (ou A Peleja dos Pretos Fedidos Contra os de Fina Estampa)
LUIZ ANTONIO SIMAS
De onde menos se espera, já dizia o Barão de
Itararé, é que não vem nada que preste. Lembrei disso quando soube que Wolf
Maia, diretor da novela global Fina Estampa, com elenco predominantemente branco
(parece que tem uns crioulos representando moradores de comunidades), foi
condenado em junho último por crime de racismo. Maia, que está recorrendo da
condenação, se referiu a um funcionário negro de um teatro de Campinas nos
seguintes termos: "me
colocaram um preto fedorento que saiu do esgoto com mal de Parkinson para operar
o canhão de luz..." ( )
O caso não me surpreende. Está na ordem do dia,
sobretudo entre certos segmentos da classe média alta e das elites endinheiradas
do país, manifestar uma pedante aversão ao povo brasileiro. Chamei isso certa
feita de "Mal de Neuendorf". Explico. Kevin Neuendorf, para quem não se lembra,
foi o chefe da delegação dos Estados Unidos durante os jogos panamericanos de
2007, realizados no Rio de Janeiro. O Mister Neuendorf chocou muita gente ao
aparecer para uma entrevista coletiva com um cartaz onde se lia: "Welcome to
Congo". Alguns brasileiros ficaram profundamente ofendidos com o gringo que,
cheio de arrogância, nos comparou ao país da África.
Escrevi na ocasião um texto em que,
provocativamente, concordei com o mister e afirmei que somos de fato o Congo.
Alguns acontecimentos recentes, feito esse caso Wolf Maia, apenas escancaram a
existência de uma elite preconceituosa, nefasta, assustadoramente moralista e
potencialmente fascista. É por isso que retomo e desenvolvo alguns argumentos
que utilizei à época para afirmar, aos que sofrem do Mal de Neuendorf (ou
Síndrome de Wolf Maia, se preferirem), que os brasileiros, pretos fedidos, somos
Congo mesmo. Com muito orgulho.
Somos porque vieram de lá, da região do
Congo-Angola, só no século XVII, cerca de 700 mil africanos para trabalhar nas
lavouras e minas do Brasil Colonial. Nós, os brasileiros, somos, portanto,
congos. Somos também jalofos, bamuns, mandingas, bijagós, fantes, achantis, gãs,
fons, guns, baribas, gurúnsis, quetos, ondos, ijexás, ijebus, oiós, ibadãs,
benins, hauçás, nupês, ibos, ijós, calabaris, teques, iacas, anzicos, andongos,
songos, pendes, lenges, ovimbundos, ovambos, macuas, mangajas e cheuas.
Todos estes acima mencionados são grupos de
africanos que chegaram nessas praias com seus valores, conjuntos de crenças,
costumes e línguas - culturas, enfim - para, ao lado de minhotos, beirões,
alentejanos, algarvios, transmontanos, açorianos, madeirenses e milhares de
comunidades ameríndias, civilizar o Brasil.
O caso é que agora está rolando uma certa moda
- que faz a alegria dos descolados iconoclastas e dos apóstolos do liberalismo
mais tacanho - de atribuir aos próprios africanos a responsabilidade sobre a
escravidão. Todo mundo palpita sobre a história da África, mete o bedelho sem
conhecimento de causa e, nesse rame-rame, tem gente dizendo que nós nunca fomos
racistas e que Monteiro Lobato comparava Tia Nastácia a uma macaca beiçuda por
uma questão de afeto. Sugiro que esses papudos leiam Silvio Romero e Oliveira
Vianna, dois intelectuais respeitados em antanhos.
Silvio Romero, ao refletir sobre o problema
brasileiro no início do século passado, sugeriu que a única salvação do país era
torcer para que a miscigenação se fosse processando com o aumento contínuo do
sangue branco. Chegou a profetizar que (se a miscigenação fosse estimulada) a
superioridade do sangue branco prevaleceria e no ano 2000 não haveria mais
traços negróides no nosso povo. Clarear o brasileiro, eis a solução do nobre
intelectual.
Oliveira Vianna, por sua vez, escreveu um livro
outrora muito respeitado, que apaixonou gerações de leitores, chamado Evolução
do povo brasileiro. Segundo este autor, a salvação possível do Brasil era a
nação embranquecida. Para ele, a imigração européia, a fecundidade dos brancos ,
maior do que a das raças inferiores (negros e índios ), e a preponderância de
cruzamentos felizes, nos quais os filhos de casais mistos herdariam as
características superiores do pai ou da mãe branca, garantiam um futuro
brilhante e branquelo ao Brasil.
A irresponsabilidade de reacionários rancorosos
e embusteiros intelectuais escancara a existência de brasileiros que sentem
verdadeiro nojo do nosso povo, execram o Brasil e guardam no fundo de suas almas
o acalentado sonho que Romero e Vianna ousaram expressar. São aqueles que nutrem
verdadeiro pânico de lembrar que vivem num país mestiço, em larga medida
civilizado pela África e dotado da cultura mais rica e múltipla que o mundo
conhece.
São brasileiros que marcharam com Deus pela
liberdade em 1964, mandam os filhos para intercâmbios nos EUA, Austrália e
Europa em busca de valores supostamente civilizados, vivem encastelados em
condomínios luxuosos, acham que a empregada doméstica deve vestir uniforme
branco e subir pelo elevador de serviço, não gostam de pretos, botam fogo em
índios, não respeitam as religiosidades afro-ameríndias, dizem que samba é coisa
de gentinha, frequentam compulsivamente shoppings centers, gastam num jantar o
que pagam em um mês para os empregados, vibram quando a polícia executa
moradores de favelas e criam filhos enfurecidos e preconceituosos que saem de
noitadas em boates da moda para surrar pobres, gays e garotas de programa nas
esquinas das grandes cidades.
Essa gente não se conforma com o Brasil que
vive nos maracatus, nos moçambiques, na taieira, na folia de são Benedito, no
candomblé de angola, nas cavalhadas, no terno-de-congo, no batuque do jongo e na
dança do semba.
Somos os pretos fedidos que tanto irritam os
Wolf Maia. E somos porque batemos tambor, batemos cabeça, dançamos e rezamos
como os do lado de lá da Calunga Grande, o mar dos tumbeiros, sepultura de
tantos.
Somos o Congo e somos a África porque somos o
país de Zumbi, Licutam, Ganga- Zumba, Luiza Mahin, Bamboxe Obitiku , Felisberto
Benzinho, Cipriano de Ogum, Leônidas da Silva, João da Baiana, Donga ,
Pixinguinha, Candeia, Mãe Senhora, Mãe Aninha, Tata Fomutinho, João Candido,
Osvaldão, Marighela, Martiniano do Bomfim, Solano Trindade, Silas de Oliveira e
de tantos outros heróis civilizadores.
Urge afirmar, contra os preconceitos mais
mesquinhos dos de fina estampa, o Brasil que acalentamos - o nosso Congo
Ameríndio de macaias, aldeias, botequins, ocas, sambas, calundus, jongos e
portugueses fados. Com a proteção de Zambiapungo, de todos os inkices de Angola
e dos ancestrais do samba.
Abraços
: O Esquerdopata
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