O
ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas. A teoria do domínio
do fato foi adotada de forma inédita pelo STF (Supremo Tribunal Federal)
para condená-lo.
Sua
adoção traz uma insegurança jurídica "monumental": a partir de agora,
mesmo um inocente pode ser condenado com base apenas em presunções e
indícios.
Quem
diz isso não é um petista fiel ao principal réu do mensalão. E sim o
jurista Ives Gandra Martins, 78, que se situa no polo oposto do espectro
político e divergiu "sempre e muito" de Dirceu.
Com
56 anos de advocacia e dezenas de livros publicados, inclusive em
parceria com alguns ministros do STF, Gandra, professor emérito da
Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e
da Escola Superior de Guerra, diz que o julgamento do escândalo do
mensalão tem dois lados.
Um deles é positivo: abre a expectativa de "um novo país" em que políticos corruptos seriam punidos.
O outro é ruim e perigoso pois a corte teria abandonado o princípio fundamental de que a dúvida deve sempre favorecer o réu.
*
Folha - O senhor já falou que o julgamento teve um lado bom e um lado ruim. Vamos começar pelo primeiro.
Ives
Gandra Martins - O povo tem um desconforto enorme. Acha que todos os
políticos são corruptos e que a impunidade reina em todas as esferas de
governo. O mensalão como que abriu uma janela em um ambiente fechado
para entrar o ar novo, em um novo país em que haveria a punição dos que
praticam crimes. Esse é o lado indiscutivelmente positivo. Do ponto de
vista jurídico, eu não aceito a teoria do domínio do fato.
Por quê?
Com
ela, eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a
verdade material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas
comete um crime e o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há
nenhuma prova senão o depoimento dela -e basta um só depoimento. Como
você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada,
você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora esse
risco. É uma insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado,
com 56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre
prevaleceu no Supremo foi a do "in dubio pro reo" [a dúvida favorece o
réu].
Houve uma mudança nesse julgamento?
O
domínio do fato é novidade absoluta no Supremo. Nunca houve essa
teoria. Foi inventada, tiraram de um autor alemão, mas também na
Alemanha ela não é aplicada. E foi com base nela que condenaram José
Dirceu como chefe de quadrilha [do mensalão]. Aliás, pela teoria do
domínio do fato, o maior beneficiário era o presidente Lula, o que vale
dizer que se trouxe a teoria pela metade.
O domínio do fato e o "in dubio pro reo" são excludentes?
Não
há possibilidade de convivência. Se eu tiver a prova material do crime,
eu não preciso da teoria do domínio do fato [para condenar].
E no caso do mensalão?
Eu
li todo o processo sobre o José Dirceu, ele me mandou. Nós nos
conhecemos desde os tempos em que debatíamos no programa do Ferreira
Netto na TV [na década de 1980]. Eu me dou bem com o Zé, apesar de
termos divergido sempre e muito. Não há provas contra ele. Nos embargos
infringentes, o Dirceu dificilmente vai ser condenado pelo crime de
quadrilha.
O "in dubio pro reo" não serviu historicamente para justificar a impunidade?
Facilita
a impunidade se você não conseguir provar, indiscutivelmente. O
Ministério Público e a polícia têm que ter solidez na acusação. É mais
difícil. Mas eles têm instrumentos para isso. Agora, num regime
democrático, evita muitas injustiças diante do poder. A Constituição
assegura a ampla defesa -ampla é adjetivo de uma densidade
impressionante. Todos pensam que o processo penal é a defesa da
sociedade. Não. Ele objetiva fundamentalmente a defesa do acusado.
E a sociedade?
A
sociedade já está se defendendo tendo todo o seu aparelho para
condenar. O que nós temos que ter no processo democrático é o direito do
acusado de se defender. Ou a sociedade faria justiça pelas próprias
mãos.
Discutiu-se muito nos últimos dias sobre o clamor popular e a pressão da mídia sobre o STF. O que pensa disso?
O
ministro Marco Aurélio [Mello] deu a entender, no voto dele [contra os
embargos infringentes], que houve essa pressão. Mas o próprio Marco
Aurélio nunca deu atenção à mídia. O [ministro] Gilmar Mendes nunca deu
atenção à mídia, sempre votou como quis.
Eles
estão preocupados, na verdade, com a reação da sociedade. Nesse caso se
discute pela primeira vez no Brasil, em profundidade, se os políticos
desonestos devem ou não ser punidos. O fato de ter juntado 40 réus e se
transformado num caso político tornou o julgamento paradigmático: vamos
ou não entrar em uma nova era? E o Supremo sentiu o peso da decisão.
Tudo isso influenciou para a adoção da teoria do domínio do fato.
Algum ministro pode ter votado pressionado?
Normalmente,
eles não deveriam. Eu não saberia dizer. Teria que perguntar a cada um.
É possível. Eu diria que indiscutivelmente, graças à televisão, o
Supremo foi colocado numa posição de muitas vezes representar tudo o que
a sociedade quer ou o que ela não quer. Eles estão na verdade é na
berlinda. A televisão põe o Supremo na berlinda. Mas eu creio que cada
um deles decidiu de acordo com as suas convicções pessoais, em que pode
ter entrado inclusive convicções também de natureza política.
Foi um julgamento político?
Pode
ter alguma conotação política. Aliás o Marco Aurélio deu bem essa
conotação. E o Gilmar também. Disse que esse é um caso que abala a
estrutura da política. Os tribunais do mundo inteiro são cortes
políticas também, no sentido de manter a estabilidade das instituições. A
função da Suprema Corte é menos fazer justiça e mais dar essa
estabilidade. Todos os ministros têm suas posições, políticas inclusive.
Isso conta na hora em que eles vão julgar?
Conta. Como nos EUA conta. Mas, na prática, os ministros estão sempre acobertados pelo direito. São todos grandes juristas.
Como o senhor vê a atuação do ministro Ricardo Lewandowski, relator do caso?
Ele
ficou exatamente no direito e foi sacrificado por isso na população.
Mas foi mantendo a postura, com tranquilidade e integridade. Na
comunidade jurídica, continua bem visto, como um homem com a coragem de
ter enfrentado tudo sozinho.
E Joaquim Barbosa?
É
extremamente culto. No tribunal, é duro e às vezes indelicado com os
colegas. Até o governo Lula, os ministros tinham debates duros, mas
extremamente respeitosos. Agora, não. Mudou um pouco o estilo. Houve uma
mudança de perfil.
Em que sentido?
Sempre
houve, em outros governos, um intervalo de três a quatro anos entre a
nomeação dos ministros. Os novos se adaptavam à tradição do Supremo. Na
era Lula, nove se aposentaram e foram substituídos. A mudança foi
rápida. O Supremo tinha uma tradição que era seguida. Agora, são 11
unidades decidindo individualmente.
E que tradição foi quebrada?
A
tradição, por exemplo, de nunca invadir as competências [de outro
poder] não existe mais. O STF virou um legislador ativo. Pelo artigo 49,
inciso 11, da Constituição, Congresso pode anular decisões do Supremo.
E, se houver um conflito entre os poderes, o Congresso pode chamar as
Forças Armadas. É um risco que tem que ser evitado. Pela tradição, num
julgamento como o do mensalão, eles julgariam em função do "in dubio pro
reo". Pode ser que reflua e que o Supremo volte a ser como era
antigamente. É possível que, para outros [julgamentos], voltem a adotar a
teoria do "in dubio pro reo".
Por que o senhor acha isso?
Porque a teoria do domínio do fato traz insegurança para todo mundo.
0 Comentários
Estamos aguardando seu comentário