Ao
decidir por 59 votos a 13 que o senador Delcídio Amaral (PT-MS) deve
permanecer em prisão preventiva, conforme resolução aprovada por
unanimidade pela Segunda Turma do Supremo Tribuna Federal, o Senado
brasileiro preferiu jogar para a plateia da Justiça do espetáculo em vez
de defender páginas mais honradas de sua história. Só para você ter uma
ideia. Ao escrever a petição ao STF onde pedia a prisão do senador, o
Procurador Geral da República admite que o pedido poderia ser recusado e
até ser considerado uma medida descabida "em razão da vedação
constitucional." Está lá, na página 44 da petição.
Enrolado em vários episódios
difíceis de explicar, Delcídio foi preso na manhã de ontem, em
circunstâncias incompatíveis com os direitos reservados a um parlamentar
brasileiros. Como você verá nos parágrafos abaixo, não faltavam motivos
para que ele fosse chamado a prestar contas a Justiça, para explicar
denúncias graves. A questão é a necessidade de mantê-lo na cadeia.
Ocorreram cenas graves, como invasão de seu gabinete, coleta de
documentos, os computadores foram levados pela Polícia Federal.
Num regime democrático, a
Constituição faz exigências particulares para aceitar a prisão de
deputados e senadores, que precisam ser compatíveis com a condição de
representantes do povo, cujos poderes soberanos são definidos no artigo
primeiro de nossa carta maior. O espírito dos constituintes não é
facilitar a prisão dessas pessoas. Pelo contrário. Deixa mas claro que,
por seu papel político, podem usufruir de garantias suplementares na
preservação de sua liberdade.
Para simplificar um debate
complicado: um parlamentar só pode ser preso em flagrante, quando
cometer um crime inafiançável. Acusado de obstruir a ação da Justiça, a
prisão de Delcídio, de caráter preventivo – isto é, não tem sequer prazo
para terminar -- não atendeu claramente a nenhuma dessas exigências,
ainda que ele tenha se envolvido em diálogos cabeludíssimos,
incompatíveis com a função que desempenha na República.
Para tornar o caso ainda mais grave e
deprimente, Delcídio era líder do governo no Senado e um articulador
político respeitado pelos colegas da maioria dos partidos da Casa.
Elogiado por lideres da oposição, a começar pelo senador Aloysio Nunes
Ferreira (PSDB-SP), que foi vice na chapa de Aécio e chegou a dizer
ontem que torcia para que o Poder Judiciário não demonstrasse sua culpa
nas acusações apresentadas, Delcídio amargou uma nota de Ruy Falcão,
presidente do Partido dos Trabalhadores. Dizendo que o PT não se sentia
obrigado a "qualquer gesto de solidariedade" com Delcídio, Falcão
expressou a raiva guardada por um numeroso exército de parlamentares e
militantes inconformados com o comportamento do senador em 2005. Naquela
época, quando ocupou presidência da CPI dos Correios, principal fonte
de denúncias da AP 470, Delcídio foi acusado de mostrar-se um aliado da
oposição, sem compromissos com colegas de partido, muitos deles acusados
e até condenados injustamente pelo Supremo de Joaquim Barbosa e Ayres
Britto.
Dez anos depois, foi apenas uma nota contra um parlamentar que até a véspera recebia as honras possíveis do partido.
Delcídio deixou inúmeras conversas
gravadas – muitas de caráter especulativo – que merecem ser apuradas e
investigadas, já que contém indícios fortes de fatos criminoso. É fácil
perguntar e difícil de responder algumas questões essenciais. Além de
falar, prometer, sugerir, oferecer-se para, Delcídio cometeu alguma ação
criminosa, embolsou recursos indevidos, participou efetivamente de
alguma atividade ilegal?
É fácil compreender o motivo de
tudo. Sentindo-se ameaçado por uma possível delação premiada do
ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, condenado a 12 anos na Lava
Jato, que poderia apontar seu envolvimento na venda da refinaria de
Pasadena e outras operações ruinosas da Petrobras, Delcídio manteve
vários diálogos impróprios e inaceitáveis. Apresentou-se como um
político capaz de usar a própria influencia e contatos pessoais para
convencer ministros do Supremo a dar um habeas corpus a Cerveró -- numa
gabolice fora de lugar que ajudou a construir uma unidade contra ele na
votação de ontem pela manha, no STF.
Delcídio manteve conversas onde
dizia que, depois de receber o HC, o ex-diretor deveria fugir do país,
tendo o cuidado de recomendar que desse preferência a fronteira seca do
Paraguai e embarcasse para a Espanha – país onde possui uma segunda
nacionalidade – a bordo de um jato Falcon, recomendável, em suas
palavras, porque chegaria a Península Ibérica sem fazer escalas. Por
fim, para garantir o conforto da família, que ficaria no país, ele
poderia assegurar o pagamento de uma mesada de R$ 50 000 aos parentes
próximos de Cerveró, dinheiro que não sairia de seu próprio bolso, mas
dos cofres do banqueiro Andre Esteves, dono do BTG Pactual, também
interessado em evitar que o ex-diretor abrisse o bico. Num encontro,
Delcídio entregou R$ 50 000 a Bernardo Cerveró, filho do ex-diretor
encarcerado, dizendo que era um presente do banqueiro.
A trama em que Delcídio tomou parte,
num papel de protagonista, foi essa, com o objetivo de salvar a
carreira e livrar sua cara. Muitas ideias que alimentou eram falsas ou
fantasiosas demais, num enredo de trapalhadas que guarda semelhanças com
o caso dos Aloprados, que atingiu a campanha de Lula em 2006 – onde os
petistas construíram armadilhas que atingiram eles próprios.
"Ele percebeu que a delação premiada
do Cerveró iria jogar seu mundo abaixo, carregando ambições e projetos
com ele", observa um parlamentar do PT que o conhece de perto. "Ficou
desesperado e passou a agir de acordo com isso."
Delcídio chegou a ser gravado em
conversas quando nada fazia muito sentido. Ainda falava sobre os planos
de fuga 24 horas depois do próprio Cerveró ter assinado o acordo de
delação premiada, sem deixar de registrar, é claro, as denúncias contra o
senador e contra o banqueiro.
Na semana passada, quando os planos
estavam em queda, a notícia sobre o envolvimento do senador na Lava Jato
vazou. Num esforço para tentar impedir que o caso viesse a público,
Delcídio ameaçou empregar o recém-aprovado Direito de Resposta para
impedir que a TV Globo publicasse uma denúncia a seu respeito. Conseguiu
impedir a notícia naquela hora mas a bomba explodiu ontem.
Gravadas pelo filho Bernardo
Cerveró, as fitas serviram como prova de que Delcídio e Esteves tentavam
impedir seu pai de colaborar com a Justiça. O placar do senado, ontem,
demonstra uma situação política onde o Congresso se encontra na
defensiva, encontrando dificuldade para se impor entre os demais poderes
e defender suas prerrogativas.
Tanto as 48 páginas assinadas por
Teori Zavaski, que formam a Ação Cautelar 4039, como a petição de Janot
pedindo as prisões dos acusados, são menos enfáticas do que se poderia
supor pelo placar do senado – e pelo discurso de apoio incondicional a
uma decisão do STF.
No documento de Zavaski, fala-se de
elementos que "apontam, embora de modo suposto, para a participação do
senador na prática, em tese, dos delitos apontados pelo procurador geral
da República." É assim? "Modo suposto", "em tese"?
Na petição de Janot, as dificuldades
para encontrar bases legais para conduzir o senador para o cárcere
ficam evidentes na parte final da argumentação. Depois de deixar claro
que requer a prisão preventiva de Delcídio, o PGR até admite: "caso se
entenda descabida a prisão preventiva do congressista, em razão da vedação constitucional (o grifo é meu)" o Procurador Geral da República requer a imposição cumulativa" de um conjunto de medidas cautelares.
O texto fala ainda "exegese
corretiva" nas disposições constitucionais. Como se estivesse fazendo
uma proposição que não se encaixa adequadamente ao arcabouço legal do
país, a petição lembra que na Constituição norte-americana a "imunidade
dos congressistas à prisão é muitíssimo mais limitada", argumento que
pode ser uma grande contribuição aos debates sobre Direito
Constitucional mas tem pouca serventia para enquadrar pessoas que devem
ser julgadas pelas regras em vigor, elaboradas por quem tinha o direito
dar conta da tarefa. Procuradores são profissionais concursados. Não
são constituintes. O texto também destila uma visão discutível sobre os
políticos brasileiros ("humanos, demasiado humanos"), que integra a
cartilha da criminalização dos partidos políticos e suas lideranças, que
é o ponto de partida natural para que tenham direitos diminuídos de
qualquer maneira – mesmo que isso não esteja previsto em lei.