Diante de senadores apequenados, a repetir
irrelevâncias como subterfúgio, Dilma escancarou a inexistência de motivos
reais para condená-la, exceto o cobiçado assalto ao poder, dos que
foram rejeitados pelas urnas. Longe
de ser o fim, a tentativa conservadora de inocular prostração na
resistência democrática, marcou ali uma etapa dentro de uma escalada.
Os recados explícitos nas manchetes preparatórias para o ‘desfecho’ frustrado são igualmente ilustrativos dessa progressão. Faz
parte da espiral calcificar um partido de trabalhadores, inviabilizar
sua estrutura, reduzir a cinzas as principais lideranças. A
existência altiva de uma organização de trabalhadores constitui um
freio inestimável às arremetidas da barbárie em qualquer época, em
qualquer sociedade. Daí o
golpe dispensar à destruição do PT – de Dilma e Lula-- uma centralidade
equivalente a atribuída à revogação do direitos sociais e trabalhistas
exigidos pelo mercado. O seletivo afinco do juiz Moro em atender à primeira demanda é um requisito para viabilizar a segunda. O
estrago já produzido em direitos e garantias deve servir à reflexão
de dirigentes do PT, mas também aos que desdenharam das consequências
que a caçada acarretaria a todo o campo progressista. O julgamento do impeachment, insista-se, é só um ponto da espiral regressiva. O golpe de 1964 levou quase cincos anos para encontrar um chão ‘institucional’ baseado no terror, na tortura e na censura. O
‘1964 parlamentar’ de agora continua distante do seu modus operandi,
mesmo depois da votação final neste (31/08), e por uma razão
bastante forte. A raiz da
disputa não são obviamente as pedaladas. Mas, sim, a delicada
reordenação do desenvolvimento brasileiro, em meio ao esgotamento da
ordem neoliberal, o que requisita um poder de coordenação econômica, e
de planejamento democrático, rechaçado pelos que sempre enxergaram no
Estado a extensão de seus interesses privados. O
jogo, portanto, está em aberto, não sendo temerário prever como
inevitável o aguçamento das contradições e dos conflitos no período que
se abre. Com um agravante. Inabilitadas
pela ruptura da legalidade, as instituições mediadoras, a exemplo de
uma parte ostensiva do judiciário, estão reduzidas a coadjuvantes do
assalto ao poder. A
predominar a lógica do golpe, a aliança da mídia com a escória e o
dinheiro vai empurrar a nação para uma ‘noite de São Bartolomeu’. O
epíteto remete à jornada sangrenta de agosto de 1572, em Paris, quando
milhares de protestantes, força política em ascensão, foram trucidados
pela nobreza católica incrustrada na hierarquia da Igreja. A matança religiosa escondia a disputa pelo poder na economia e na sociedade. Após
quatro derrotas presidenciais sucessivas, sendo a última, em outubro de
2014, com seu quadro supostamente mais palatável, as elites decidiram
não esperar por um quinto revés para Lula, em 2018. E abriram caminho para a sua ‘noite de São Bartolomeu’. Fizeram-no,
como se constata na escalada vertiginosa do cerco ao PT e do atropelo
ao Estado de Direito, convictas de que só escavando um fosso profundo na
ordem constitucional teriam o poder necessário para a demolição
requerida. Qual? Aquela
capaz de transformar a construção inconclusa de um Brasil para todos,
na recondução da ordem e do progresso para os de sempre. O golpe apunhala a democracia para atingir o interesse popular. Não deixam dúvida os recados emitidos para lubrificar a simpatia dos mercados à borrasca. Vem
aí um vergalhão de privatizações de serviços essenciais, informou,
domingo, o jornal O Globo, um porta-voz credenciado do assalto. Em
garrafais apoteóticas, o diário dos Marinhos avisa que de creches a
prisões, passando por hospitais, saneamento, desapropriações, tudo no
Brasil será entregue à gestão privada. Um
pouco mais adiante será a vez de aleijar a soberania nacional no
pre-sal, descartando uma alavanca industrializante como anacronismo
populista. Assim sucessivamente. O
Sistema Único de Saúde será descarnado para abrir espaço ao ingresso
dos planos populares no mercado; a universidade pública está na fila da
guilhotina e os direitos trabalhistas da CLT não terão vida longa se na
4ª feira, 31/08, a votação do impeachment consumar a degradante obra de
um congresso contra o povo. Os
acontecimentos em marcha vieram reafirmar a rigidez da fronteira onde
acaba a tolerância do dinheiro e do mercado com o projeto de construção
de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta. ‘A
democracia prometeu mais do que o capitalismo pode conceder sem
mergulhar a economia em uma crise fiscal desestabilizadora’, martelou
diuturnamente o jogral midiática, em todo o ciclo introdutório à ‘noite
de São Bartolomeu’. O mercado
entendeu que a crise econômica global –diante da qual o governo esgotou
o fôlego dos contrapesos fiscais em cinco anos em resistência-- abriu a
oportunidade para um acerto de contas. E quer fazer o serviço completo. Cortar
o mal pela raiz significa estender a sanha regressiva à fonte da
universalização de direitos, a Constituição Cidadã de 1988, da qual o PT
se tornou o principal guardião Ter
um Estado que trata encargos sociais como estorvo do mercado, por mais
que gere uma euforia inicial nos donos do dinheiro, não resolverá as
grandes pendências nacionais emolduradas por um pano de fundo
desafiador. O mundo vive a mais longa, incerta e frágil convalescença de uma crise capitalista desde 1929. E
o que mais se evidencia dessa arrastada UTI é a falta que faz agora
tudo o que foi subtraído do Estado e do trabalho no ciclo neoliberal
anterior à explosão das subprimes, em 2008 – regulações, direitos,
soberania, garantias trabalhistas, tributação da riqueza, salários
dignos, indução pública do investimento etc. Assim
desprovida e descarnada, a economia global não decola. Ficções de livre
comércio enfeitam essa cemitério da estagnação, em que o comércio forma
um jogo de soma zero, apenas transferindo excedente de um país para
outro. Não só. O
golpismo midiático que critica a 'irresponsabilidade fiscal petista',
omite a pressão global de gastos em uma crise que levou à queda vertical
da receita, elevando de 78% para 105% a relação dívida pública/PIB nas
economias mais ricas –ao mesmo tempo em que a participação dos salários
no PIB global recuou: hoje é 10% inferior à média dos anos 80. A conclusão é incontornável. Falta
investimento, falta demanda e emprego no capitalismo globalizado do
século XXI. E é esse corner macroeconômico que o golpe quer mimetizar
para barrar reformas e retificações de privilégios --tributários, entre
eles-- necessárias ao passo seguinte do crescimento nacional. A
resposta conservadora para o impasse é a ‘noite de São Bartolomeu’:
vinte anos sem crescimento real nos gastos públicos, incluindo-se a
escola e a saúde, o que num país jovem em expansão demográfica,
significa na prática arrocho per capita por duas décadas em serviços
essenciais. Graças ao
monopólio midiático, esse agendamento interditou o debate de uma
delicada transição de ciclo econômico para a qual não existe solução
fora da repactuação da sociedade. A
manipulação avaliza soluções que privilegiam os mercados, impõe uma
verdadeira regressão civilizacional ao país, corrói aquilo que tão
arduamente se reconquistou, a autoestima e o direito à esperança no
futuro. O que sobra? Uma ruptura mais profunda do que a mera destituição de um Presidente da República. De diferentes ângulos da economia e da democracia emergem avisos de saturação estrutural. Um novo ciclo de desenvolvimento precisa ser construído. Quem o conduzirá: a democracia ou um regime de força? Em
1964, a transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar criou
uma irrepetível válvula de escape momentânea para as contradições
violentas de uma sociedade que já não cabia no seu modelo anterior. Mesmo com essa válvula de escape, a repressão do regime foi brutal. Hoje não há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer a panela de pressão da nova encruzilhada do desenvolvimento brasileiro. As
legiões que não cabem nele serão escorraçadas pela explosiva supressão
de direitos que se anuncia, sendo atiradas a uma periferia
constitucional coagidas a reagir de forma explosiva ou perecer. Erra
esfericamente também quem imaginar que esse estirão pode ser mitigado
com a maciça entrega do que sobrou do patrimônio público, depois do
governo do PSDB. Privatizações
concentram ainda mais a renda; definham adicionalmente o já
enfraquecido poder indutor do investimento público, reduzem a receita do
Estado. Radicalizam , enfim, o que o país mais precisa superar. A
reedição de um novo ‘1964’ em 2016 exigiria, ademais, uma octanagem
fascista drasticamente superior à original, para prover o aparelho de
Estado do poder de coerção necessário à devolução da pasta de dente que
já escapou do tubo. Não há uma terceira escolha. Voltar
às urnas na esteira de forte mobilização da sociedade; ou entregar a
nação a uma ‘noite de São Bartolomeu’ de desdobramentos incontroláveis? Essa é a disjuntiva. A farsa do julgamento da Presidenta Dilma Rousseff, não vai muda-la, nem resolve-la. Essa tarefa cabe à resistência democrática. E
ela terá que ser construída nas ruas, a partir de agora, com a firmeza e
a determinação de uma desassombrada volta às origens, para forçar a
elite a reconhecer o direito do povo ao país
Jornalista desde 1986, trabalhou no Diario do Rio Doce, em Minas Gerrais, Jornal da Cidade, Jornal da Paraiba, Radio Borborema, Jornal Porta Voz e Jornal a Tromba.