Dona Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017)
Foi num palácio. O Palácio da Alvorada. E era domingo festivo: Dia
das Mães, 11 de maio de 2003, ano do primeiro mandato do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva. Nos jardins, acontecia um churrasco. Diante da
corte de fotógrafos, jornalistas e curiosos, Lula ajoelha-se aos pés de
sua mulher. A primeira-dama, então, pousa os pés sobre a perna do
marido. E ele amarra o cadarço
solto do tênis dela.
No dia seguinte, UAU, a foto sai estampada na capa dos principais
jornais e revistas do país. Mais uma vez, o Brasil inteiro se derretia
com a demonstração explícita de afeto do presidente por sua companheira,
Marisa Letícia Lula da Silva. A vida de dona Marisa, no entanto, nunca
foi de Cinderela. Nem Marisa sonhou ser princesa. Lula sempre a tratou
como rainha, fato. Mas isso nada tem a ver com os jardins palacianos do
flagra em Brasília. A majestade de dona Marisa Letícia já vinha de
muito, muito antes do cargo de primeira-dama.
Casada há 43 anos, Marisa já foi descrita
pelo marido como uma “grande mãe italiana”. Ela esteve ao lado de Lula
nas greves, nas lutas, na criação do PT, nas viagens das caravanas da
cidadania, nas campanhas eleitorais. Mas preferiu ficar longe dos
holofotes. “Fora de casa Lula é o centro das atenções. No campo
doméstico, Marisa é soberana. Ela é a âncora da família”, contou amiga
dos tempos de sindicalismo Miriam Belchior, que foi ex-assessora
especial da Presidência. Mulher de opiniões declaradas, sempre foi
discreta, tímida e, segundo a amiga, optou por esse papel.
O temperamento forte sempre foi da porta para dentro, onde botava “os
pingos nos is”. Em público foi reservada. Gentil, simpática e afetuosa
com os amigos, tratava com indiferença gente que julgava interesseira.
Também nunca foi de lamentar, mas de resolver os problemas. Em sua
primeira entrevista como primeira-dama, à revista Criativa em 2003,
respondeu sobre o segredo de seu casamento: “quando somos jovens
imaginamos que o mundo tem que ser cor-de-rosa, só que ele não é. Isso
muitas vezes é um choque. O amadurecimento proporciona isso, compreensão
das coisas, mais paciência. Nós (Lula e ela) aproveitamos o nosso tempo
juntos para ficar bem, felizes.”
PÉS NO CHÃO DE TERRA BATIDA
Neta de italianos, dona Marisa nasceu num
sitio em São Bernardo do Campo, SP, onde havia plantações de batata e
milho e criações de galinhas e porcos. A casa de dois quartos onde viveu
até o sete anos era de pau-a-pique e chão de terra batida. Não tinha
luz elétrica. Nem água encanada, só poço. O colchão onde dormia era de
palha. Marisa foi a penúltima filha dentre 12 irmãos. Sua mãe, Regina
Rocco Casa, era famosa benzedeira: sabia tirar quebranto, curava menino
com bucho virado. O pai hortelão, Antônio João Casa, adorava plantas.
Marisa puxou isso dele.
A primeira-dama tinha “mão boa” para lidar com mudas. Quando levou
uma jabuticabeira no vaso para dentro do apartamento em São Bernardo,
Lula achou que a planta jamais ia vingar. “Eu fiquei, como muitos, todo
santo dia resmungando e dizendo que era impossível”, disse o marido num
discurso em que fez parábola da planta de Marisa. Lula disse que o
Brasil poderia crescer em pleno aperto econômico como a jabuticabeira
que, contrariando todas as previsões, sua mulher fez vicejar. “Como ela
acreditou mais, irrigou mais, cuidou mais do que eu, o pezinho de
jabuticaba dá frutos quatro, cinco vezes por ano, coisa que esse
conselho [Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social] pode imitar se
quiser”, disse Lula, quando criou órgão do governo em fevereiro de
2003.
Marisa sempre cultivou legumes e verduras. A ponto de não precisar
comprá-los no mercado por anos. Quando virou primeira-dama incrementava a
horta atrás do Alvorada. Orgulhava-se de dizer que os canteiros estavam
com mais variedade. Também povoou o lago do Palácio com peixes e patos
quando se mudou para Brasília. A ex-primeira-dama gostava de bichos. Em
plena correria da campanha do primeiro mandato de Lula, levou para o
apartamento um cabritinho que a mãe rejeitou e o alimentou a mamadeira.
Instinto maternal exercido desde criança. Quando ainda era menina de
nove anos, em vez de bonecas, Maria foi embalar três sobrinhas do pintor
Cândido Portinari. De babá, virou operária aos 13 anos. Embalou, então,
bombons Alpino na fábrica de chocolates Dulcora. Teve de parar de
estudar na sétima série.
ENCONTRO DE FORTES
Moça bonita, loura de cachos até a cintura,
aos 19 anos, Marisa saiu da casa dos pais para se casar com seu
primeiro namorado, Marcos, um motorista de caminhão. Ele carregava areia
para construções durante o dia e de noite, saía com o táxi do pai, um
Fusca, para ganhar um extra. Queria comprar a casa própria. Seis meses
depois do casamento, Marcos foi morto por bandidos num assalto ao táxi.
Viúva, a única herança de Marisa foi o filho de quatro meses na barriga.
Ela morou no primeiro ano de viuvez com o sogro, depois foi para a casa
de sua mãe e trabalhou como inspetora de alunos num colégio público.
Dona Marília, a primeira sogra que sempre foi amiga do peito de Marisa,
ajudou a nora criar o neto de sangue, Marcos Claudio, e os outros três
que a primeira-dama teve com Lula.
Curiosidade dos destino: o sogro do primeiro casamento de Marisa, seu
Cândido, foi quem primeiro falou de Marisa para Lula. Em 1973, Luiz
Inácio tinha o apelido de “Baiano”. Novato no sindicato dos
metalúrgicos, sofria o luto por sua primeira mulher, Maria de Lourdes,
que perdeu, com o filho, na sala de parto havia dois anos. Vez ou outra,
Lula fazia uma corrida no taxi Fusquinha de seu Cândido porque a
bandeirada era mais barata do que a dos carros de quatro portas. Lula
contou, em entrevista à escritora Denise Paraná no livro “O filho do
Brasil”, que seu Cândido, sempre que falava da morte do filho, dizia que
a nora Marisa era muito bonita. “Foi muita coincidência. O tempo
passou. Quando um belo dia estou no sindicato chega essa tal de dona
Marisa”, disse Lula.
No encontro entre os dois viúvos não houve suspiros de contos de
fada. Marisa foi ao sindicato buscar um carimbo para retirar sua pensão.
Lula deixou cair sua carteirinha de identidade de sindicalista para
mostrar que também era viúvo. Ele inventou uma firula qualquer na
documentação dela para ter desculpa para pedir o telefone de Marisa. Ela
nem atendia as ligações. Mas o ex-operário, que venceu a primeira
eleição para presidente na quarta tentativa, é insistente. Um dia
estacionou o carrinho TL na porta da casa da viúva loura e botou o então
namorado de Marisa para correr, dizendo que precisava falar um assunto
sério com ela. Lula acabou conquistando a simpatia da mãe de Marisa,
Dona Regina, a benzedeira, e depois o coração da ex-primeira-dama. Em
sete meses se casaram.
COMPANHEIRA DE TODAS AS HORAS
Um ano depois do casamento, Lula já era
presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Naquele tempo,
Marisa não entendia nada sobre sindicalismo, greves, ditadura,
passeatas, piquetes… Carregava no colo o recém-nascido Fábio Luiz e
tinha na barra da saia o primogênito Marcos Cláudio, que Lula adotou
como seu. Um dia, cansada do sumiços de Lula – que saía de casa de
madrugada para fazer piquete em porta de fábrica–, Marisa decidiu entrar
no curso de política do religioso militante de esquerda Frei Betto. Aos
poucos, ela passou a entender a luta dos sindicalistas e acabou por
influenciar outras mulheres de metalúrgicos.
Certamente não foi fácil. Lula nunca pôde acompanhar a mulher na maternidade no nascimento dos filhos, por exemplo. Marisa foi mãe e pai dos meninos. Reunião de escola, festinha, finanças da casa, crediário… Tudo era ela quem cuidava. E sem empregada. Joana, considerada uma “irmã de criação” de Marisa, e a ex-sogra, dona Marília, a acudiam em situações especiais.
Em 1980, os militares tomaram o sindicato e a sala da casa de dona
Marisa virou a nova sede dos metalúrgicos. E ela também assumiu posto de
secretária. Nesse mesmo ano, Lula foi preso. Acusado de incitar uma
greve ilegal, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, principal
instrumento de repressão do regime militar. “Marisa organizou toda a
passeata com as mulheres de metalúrgicos encarcerados. E levou as
crianças no meio daquela multidão “, recorda amiga Miriam Belchior, que
também participou da manifestação. “Tinha polícia para tudo quanto é
lado”, Marisa disse em entrevistas. Ela levava os filhos Marcos, Fábio e
Sandro para visitar o pai na cadeia. O caçula, Luiz Cláudio, ainda não
tinha nascido.
Sempre junto de Lula, dona Marisa fundou o partido dos trabalhadores
também em sua sala. “Marisa entendia a missão do Lula. Ela só pegava no
pé do marido aos domingos”, disse Luiz Marinho, amigo do casal,
ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e ministro da
Previdência no governo Lula. Para ela, domingo era sagrado, era o dia da
família. E pouco importava se o almoço familiar acontecesse no
apartamento de São Bernardo ou nos salões projetados pelo arquiteto
Oscar Niemeyer. A cena dominical do dia das Mães em que Lula se ajoelhou
aos seus pés não teve nada de excepcional como alardeou a imprensa na
época. Os pequeninos gestos de carinho de Lula à sua mulher eram
rotineiros. Em uma entrevista, Marisa disse: “Em um casamento o amor é
muito importante. Mas sonhar juntos é fundamental”. Nos sonhos de dona
Marisa, estávamos todos incluídos.