“Você
sabe que esses comunistas têm que morrer, e sei que você é um patriota.
Precisamos de você.” É assim que, em 1973, Cláudio Guerra é convidado
pelo Coronel Perdigão (Freddie Perdigão Vieira) e pelo Comandante
Vieira a compor a Operação Radar, que executou 19 militantes do Partido Comunista Brasileiro
(PCB). Ex-delegado e hoje pastor da Assembleia de Deus, ele confessa os
crimes cometidos durante a ditadura civil-militar no Brasil em uma
entrevista de 70 minutos documentada pela diretora Beth Formaggini. O
resultado é o filme Pastor Cláudio,
que estreou esta semana e relata como eram feitas as execuções de
militantes do PCB, e como os corpos torturados pelo Estado eram
incinerados.
O pastor é responsável por incinerar, em Campos, João Batista Rita,
Joaquim Pires Cerveira, Ana Rosa Kucinski, Davi Capistrano, João
Massena, Fernando Augusto Santa Cruz, Eduardo Collier Filho, José Roman,
Luiz Ignácio Maranhão, Armando Teixeira Frutuoso e Thomaz Antônio
Meirelles.
O pastor – como prefere ser chamado – inicia a entrevista
portando uma bíblia em mãos. Agora um senhor de cabelos brancos, ele
tinha cerca de 30 anos quando começou a cometer as atrocidades junto ao
regime ditatorial. A entrevista é conduzida pelo psicólogo e militante
dos direitos humanos, Eduardo Passos, que se esforça de entender como
funciona a mente de Guerra. O ex-delegado chega a afirmar que seu
trabalho proporcionava sensação de poder e superioridade.
Modus operandi
Após convite para compor a operação, começou a receber a
missão de matar pessoas supostamente envolvidas com a militância contra o
regime. Depois, sua função passou a ser de queimar os corpos de pessoas
torturadas pelo DOI-CODI, o que era feito em uma usina em Campos, no
Rio de Janeiro.
Guerra foi um dos responsáveis pelo desaparecimento
político de diversos presos pelo Estado durante os anos de chumbo,
deixando muitas famílias sem respostas até o lançamento de seu livro Memórias de uma Guerra Suja,
onde narra diversos episódios dos anos de repressão. Ele foi
beneficiado pela Lei de Anistia, e nunca foi punido pelos crimes que
cometeu.
Para a diretora do filme, Beth Formaggini, resgatar a
memória sombria da ditadura militar no país é importante neste momento
em que as forças de extrema direita tomaram a o poder.
Confira abaixo a entrevista que o Brasil de Fato fez com a diretora.
Brasil de Fato: Como foi escolhido o formato do filme?
Beth Formaggini: O formato surge quando vou procurar Ivanilda Veloso, viúva do Itair José Veloso. Ela é personagem do meu outro longa, o Memórias para uso diário.
Por que a Ivanilda? Porque o marido dela foi assassinado na Operação
Radar, que é a operação que o Cláudio participou. O Cláudio atuou nessa
operação não só assassinando membros do Partido Comunista, mas também
incinerando corpos de outros militantes que foram assassinados dentro
dessa operação. Eu procuro a Ivanilda e falo: “Ivanilda, saiu o livro do
Cláudio e no livro ele confessa todos esses crimes. É possível que ele
saiba algo sobre seu marido”. Como ele era desaparecido, ela estava
desde 1975 buscando alguma informação da prisão, do assassinato e da
localização do corpo do marido. Uma mulher apaixonada.
Perguntei se ela topava gravar uma pergunta para o Cláudio.
Pego a pergunta dela e projeto junto com trechos de arquivos do filme,
onde ela está procurando algum indício de que o marido foi preso pelo
Estado, e realmente encontra. Projeto para o Cláudio para que ele possa
ajudá-la a encontrar esse corpo, saber quem matou, onde morreu, onde foi
enterrado. A gente usou um depoimento do Marival Chaves, que foi
projetado no estúdio, em que ele diz que o corpo foi jogado no Rio
Avaré, aqui em São Paulo.
Muitas famílias ficaram sabendo do paradeiro de entes desaparecidos políticos pelo filme?
Muita gente infelizmente ficou sabendo pelo livro, das
matérias de jornal, do filme. Quando o filme passou no cinema Odeon,
teve um depoimento muito emocionado de uma pessoa que estava lá e
descobriu que um grande amigo havia sido incinerado pelo Cláudio. O
Estado que foi responsável por esses crimes, pelos desaparecimentos, ele
deixou essas famílias sem informações até hoje. Esse crime de ocultação de cadáveres é um crime que não termina nunca.
Uma mãe está sempre esperando a volta de um filho se ela não viu o
corpo. Eu acho que o que a gente queria era que tivesse um agente do
Estado, um violador de direitos, anunciando suas próprias violações para
que a gente tivesse esse relato para pensar nos dias de hoje, porque
pessoas continuam desaparecendo e sendo assassinadas pela mão do Estado.
A mão que deveria proteger o cidadão.
Como foi o primeiro contato com o Cláudio?
Eu li o livro e, através dos jornalistas que escreveram o
livro com ele, eu cheguei até ele e ele concordou. Não foi difícil. Na
verdade, o que acontece nessa conversa é que o Cláudio conta uma parte
da história. Outra parte, ele não conta. Essa parte ele diz que é o que
mantém ele vivo, que ele contou para várias pessoas e se acontecer algo
com ele, essas pessoas vão relatar. É só a ponta do iceberg.
Ele escolheu alguns fatos para contar. A diferença do filme
é a presença do Eduardo, psicólogo, que traz muitas nuances. Consegue
falar sobre o gosto dele pelo poder, sobre o medo que ele têm hoje em
dia, da direita. A prática de escuta do psicólogo faz com que a gente compreenda um pouco sobre o que está por trás das palavras.
Acho que hoje a gente precisa refletir. Crimes como esse da
Marielle, em que existe uma tentativa [por parte de uma hipótese da
investigação] de incriminar uma pessoa como se fosse uma coisa isolada,
mas na verdade alguém paga por esses crimes. O Cláudio recebia por cada
pessoa que ele matava ou incinerava. Ele fala até o banco que o pagava.
Hoje, ainda existem essas práticas de assassinatos, desaparecimentos. A
mesma mão que pagava o Cláudio Guerra continua pagando. É a extrema
direita, o empresariado, uma parte da elite. A direita financia isso
para que as coisas continuem como estão, ou piorem.
Agora, a gente tem um governo que está flexibilizando as
leis trabalhistas, direitos humanos. Esse filme é muito atual, porque a
gente precisa pensar o Brasil para que a gente consiga minimamente
resistir contra essas coisas.
E como isso pode se dar?
O filme chega em um momento do Brasil em que essas forças
estão se rearticulando. Desde o impeachment da presidenta Dilma existe
esse grupo de empresários, ruralistas, e todo um movimento contra os
direitos humanos, os direitos indígenas, dos quilombolas. Todo um
discurso que estimula a violência contra negros, LGBTs, contra a
liberdade das mulheres. É um momento de retrocesso muito grande e o
filme nos faz pensar [sobre] a história do Brasil, e ver que o presente
está impregnado desse o passado, e o futuro pode ficar ainda mais se
não pararmos para discutir essas questões com cada um. É obrigação de
cada um de nós conversar sobre isso. O filme traz esse tema para a
conversa.
Como foi acompanhar essas histórias tão pesadas?
Foi muito duro. A gente claramente estava conversando com o
inimigo, alguém que estava do outro lado, embora ele seja um personagem
complexo que diz que se converteu e diz querer ajudar. Ele é um arquivo
muito grande, e abriu apenas uma gavetinha. Acho que ele é um
personagem complexo, e temos que ter esse filme como uma tentativa de
trazer luz para uma história que só tem véu encobrindo. Hoje em dia
existe ainda há uma violência muito grande por parte do Estado, em que
geralmente a imprensa dá razão para a polícia quando ela mata de forma
indiscriminada. Se coloca como “auto de resistência”. O governador do
Rio de Janeiro, por exemplo, fala sobre “abater os marginais”, como se
fossem gado. É uma experiência muito dura lidar com esses temas, e acho
que é dura, mas temos que trabalhar com a história.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira.
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