No relatório do inquérito que descartou pela segunda vez a existência de mandante no caso da facada em Jair Bolsonaro, a Polícia Federal afirmou que suas investigações não podem se basear na opinião pública ou se guiar por dúvidas de leigos.
O documento, obtido pela Folha, desconstrói teorias da conspiração criadas sobre a tentativa de assassinato cometida por Adélio Bispo de Oliveira contra o então candidato a presidente, em 2018. Bolsonaro tem insistido na tese de que o autor agiu a mando de terceiros, o que a PF refutou.
“As dúvidas provenientes dos leigos são plenamente aceitáveis, contudo, a investigação não pode ser pautada pela opinião pública, sob pena de ser marcada pela falta de rigor técnico”, escreveu o delegado da PF Rodrigo Morais no relatório, entregue ao Ministério Público Federal nesta quarta-feira (13).
“Em se tratando de uma investigação policial, o senso comum deve ser substituído por uma pesquisa sublinhada pela precisão metodológica”, afirmou o responsável pelo inquérito, o segundo aberto pela corporação sobre o caso. Ambos mostraram que Adélio, que foi declarado inimputável, agiu sozinho.
As conclusões foram apresentadas em um relatório classificado por Morais como parcial, já que a PF foi impossibilitada de averiguar um último ponto considerado importante: o celular e outros materiais apreendidos com os advogados que assumiram a defesa do autor logo após o crime.
Como mostrou a Folha, a perícia nos conteúdos depende de julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal), que ainda não começou a analisar o tema. Em meio às pressões de Bolsonaro, que vem colocando em xeque o trabalho da PF, os investigadores divulgaram os resultados obtidos até agora.
O Supremo terá que se pronunciar sobre a eventual violação de sigilo profissional de advogados, garantida pela Constituição. Se a corte der aval à perícia, uma nova frente de investigação se abrirá.
O escrutínio dos aparelhos coletados no escritório de Zanone de Oliveira Júnior poderia revelar eventuais conexões com financiadores e mentores do plano, o que o advogado nega. A PF trabalha com a possibilidade de reabrir a investigação no futuro caso o STF autorize o pente-fino nos materiais.
No documento, o delegado Morais afirma que até os advogados da vítima reconhecem que a análise do conteúdo do celular é a única diligência pendente.
No último dia 28, o presidente disse que a facada foi negligenciada pela PF e defendeu que a investigação fosse reaberta —àquela altura, contudo, a apuração finalizada nesta semana ainda estava em andamento.
Bolsonaro afirmou na ocasião não possuir provas do envolvimento de terceiros, mas disse ter “sentimentos, sugestão para dar para a Polícia Federal”. A defesa dele não recorreu da decisão judicial que absolveu Adélio e determinou que cumpra medida de segurança. O autor está preso desde o crime.
O relatório apresentado nesta quinta-feira (14) à direção-geral da corporação e ao novo ministro da Justiça, André Mendonça, detalha como os agentes, com base em dados fiscais, bancários e telefônicos, imagens e depoimentos, afastaram a participação de terceiros e a ajuda de comparsas.
A PF afirma que a investigação foi “marcada ininterruptamente pelo rigor técnico” e que, “ainda que a maioria das pessoas acredite na existência de suporte logístico” a Adélio “ou no envolvimento de grupos criminosos especializados, até o presente momento nada de concreto” surgiu sobre essas hipóteses.
A “participação de agremiações partidárias, facções criminosas, grupos terroristas ou mesmo paramilitares em qualquer das fases do ato criminoso” foi descartada. Nos últimos dias, aliados de Bolsonaro e apoiadores buscaram associar PT e PSOL, duas siglas de esquerda, ao crime.
Os partidos repudiaram a insinuação e entraram com ações na Justiça por calúnia e difamação.
A PF diz que a própria forma como a tentativa de homicídio foi cometida, usando uma faca de cozinha, torna menos crível que o criminoso tenha sido orientado por grupo organizado ou recebido suporte material ou financeiro. “A ação foi perpetrada de maneira extremamente rudimentar”, afirma o relatório.
Replicada em redes sociais, a suspeita de ligação de Adélio com o PCC (Primeiro Comando da Capital), por exemplo, foi investigada. A PF partiu da hipótese de que a eleição de Bolsonaro seria indesejada pela facção criminosa e que o autor poderia ter atuado a mando do grupo. Isso, porém, não foi comprovado.
Um sobrinho do esfaqueador que estava preso em uma penitenciária no interior de São Paulo chegou a ser rastreado, mas os investigadores concluíram que ele não tinha vínculo com nenhuma organização criminosa. O homem foi ouvido e negou qualquer envolvimento no planejamento da facada.
Outras teorias que circulam na internet foram esquadrinhadas —e “acabaram por ser minuciosamente desconstruídas”, narrou o relatório, enaltecendo “o rigor técnico” do trabalho.
“Muitas destas teorias tiveram como propósito envolver terceiros no evento delituoso a partir da perspectiva de quem as criava ou veiculava e, outras, em linha diametralmente oposta, colocaram em xeque a própria existência do ato criminoso”, afirmou o delegado.
“As dúvidas expostas por alguns ‘curiosos’ ou ‘interessados’ basearam-se em análises superficiais e pessoais que desconsideraram a existência de laudos periciais, prontuários médicos, levantamentos de campo, depoimentos, registros de sinais, enfim, evidências e diligências diversas” produzidas pela PF.
Procurada nesta quinta-feira, a Presidência da República afirmou que não comentaria o novo relatório da PF.
À Folha o advogado Antônio Pitombo, que representa Bolsonaro no processo, voltou a dizer que o atentado teve o envolvimento de mais pessoas. “A investigação criminal procura a verdade, e devemos envidar todos os esforços para apurar a coautoria por trás desse grave crime”, afirmou.
O advogado Zanone de Oliveira Júnior —que defendeu Adélio até o ano passado, quando ele passou a ser representado pela DPU (Defensoria Pública da União)— elogiou o inquérito da PF, reiterou que sua atuação se deu dentro das normas legais e repetiu que seu cliente cometeu o ataque sozinho.
O MPF, que recebeu o relatório, decidirá agora se pede o arquivamento do caso ou a realização de mais diligências. A manifestação do órgão será enviada ao juiz Bruno Savino, da 3ª Vara Federal de Juiz de Fora.
Adélio sempre sustentou a narrativa de que agiu a mando de Deus para tentar livrar o Brasil da vitória de Bolsonaro, que via como uma ameaça. No ano passado, ele recusou uma proposta da PF para fazer um acordo de delação premiada. Respondeu que, mesmo que quisesse, não teria ninguém para apontar.
Em março, a Justiça Federal autorizou que Adélio seja transferido do Presídio Federal de Campo Grande (MS) para um local onde possa receber tratamento adequado de saúde mental. A mudança, contudo, ainda não se concretizou.
O espaço indicado para receber o autor do crime é um hospital psiquiátrico em Barbacena (MG) —a 586 km de Montes Claros (MG), onde moram seus familiares. Os trâmites judiciais para efetivar a transferência foram prejudicados pela crise do coronavírus e pela ausência de vagas no estabelecimento.
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