Escandalo da vacina Covaxim pode derrubar Bolsonaro

 

BRASÍLIA — Após se recusar a assinar um recibo que previa um pagamento antecipado pela importação da vacina indiana Covaxin, o servidor concursado do Ministério da Saúde Luis Ricardo Fernandes Miranda diz, em entrevista ao GLOBO, ter se encontrado pessoalmente com o presidente Jair Bolsonaro no dia 20 de março para denunciar as suspeitas sobre a importação do imunizante. Segundo ele, o presidente teria se comprometido a encaminhar o caso para a Polícia Federal.

O contato entre Luis Ricardo e Bolsonaro foi feito por meio do irmão do servidor, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF). Ambos estiveram no Palácio da Alvorada num encontro registrado com fotos e mensagens que serão apresentadas à CPI da Covid na próxima sexta-feira.

Ao GLOBO, Luis Ricardo diz ter denunciado ao presidente as suspeitas envolvendo a Covaxin e apresentado um material que comprovaria que, em um documento recebido pelo servidor, houve um pedido de pagamento fora do contrato para importar três lotes com data próxima do vencimento.

“Eu apresentei toda a documentação, o contrato que foi assinado, as pressões que estavam acontecendo internamente no ministério, e a gente levou até a casa do presidente (no Palácio da Alvorada). Conversamos com ele, mostramos todas as documentações, as pressões, e ele ficou de, após a reunião, falar com o chefe da Polícia Federal para investigar”, disse o servidor.

Caso esse recibo tivesse sido assinado, segundo Luis Ricardo, a empresa poderia cobrar um pagamento adiantado, o que a área técnica considerava indevido, no valor de US$ 45 milhões (R$ 222,6 milhões).

O contrato para a compra da Covaxin com o Ministério da Saúde não prevê pagamento antecipado. O recibo previa ainda só 300 mil doses, menos que as 4 milhões previstas para o primeiro embarque no contrato.

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Em entrevista, o servidor relatou também uma “pressão anormal” no processo para agilizar o envio da documentação à Anvisa, mesmo estando incompleta, e pedir a importação da vacina Covaxin. A agência reguladora negou o pedido, já que a farmacêutica indiana não tinha cumprido os requisitos necessários para conseguir a emissão de um certificado de boas práticas.

O Palácio do Planalto foi procurado, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

Leia abaixo a entrevista.

Qual é o seu trabalho no ministério?

Eu trabalho no ministério como servidor público concursado desde 2011, sempre lotado no departamento de logística. Estou à frente da importação do ministério desde 2016. Somos responsáveis por toda a importação de insumos estratégicos para a Saúde como vacina, medicamentos, enfim. Somos a ponta do processo, após a construção de assinaturas de contrato, a parte final, para que a vacina chegue ao Brasil e seja distribuída a toda a população.

O senhor relatou ao Ministério Público Federal (MPF) que houve pressão no caso da Covaxin. Como isso ocorreu?

A gente executou primeiro o embarque internacional de vacina do consórcio Covax (Facility, da OMS). Devido à dificuldade de todos os países quererem adquirir as vacinas do consórcio, a OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) conseguiu algumas doses para o Brasil. A documentação ficou pronta só vinte e quatro horas, se eu não me engano, antes do voo chegar no Brasil. A gente fez todo o processo de importação, junto com a Anvisa, a Receita Federal e o aeroporto. Conseguimos realizar o desembaraço. Não teve nenhuma pressão, ligação, reunião, algo muito intenso, por parte dos gestores para a realização desse processo. No caso máximo, se eu não me engano, foi quando chegou essa vacina, o primeiro embarque.

No caso da Covaxin, houve muito questionamento, como estava a documentação, muita reunião e faltava a documentação técnica. A documentação apresentada estava muito divergente do que estava estipulado no contrato. A nossa equipe, da importação, não se sentiu segura e confortável para a execução daquele processo, daquela importação. Vieram ordens superiores para que fosse solicitada a autorização pela Anvisa, mesmo não tendo toda a documentação completa. Eu me isentei como chefe de assinar esse processo. É um ofício que solicita uma excepcionalidade, assinado por outro gestor, e a gente fez a solicitação para a Anvisa, que foi negada.

De quem partiram essas ordens que o senhor mencionou?

No relato ao Ministério Público, eu (disse) que sou subordinado a um coordenador geral, o qual eu citei no meu depoimento, que é o Alex Lial Marinho, coordenador da CGLOG, coordenação logística de insumos estratégicos da Saúde, que cuida da distribuição e recebimento de vacinas. O diretor do departamento de logística, Roberto Ferreira Dias. E tive contato também com um assessor da Secretaria Executiva. Coronel Pires.

Como foi essa ligação fora do horário de trabalho?

Eu recebi esse contato da Secretaria Executiva, desse coronel Pires (que disse): “Precisamos fazer tudo para ajudar, o representante da empresa veio agora à noite falar. Com o secretário executivo, Élcio, para agilizar as licenças de importação para embarcar as vacinas ainda esta semana.” (Essa ligação, segundo o servidor, ocorreu às 23h de uma sexta-feira, em 19 de março). Ele (Pires) conseguiu o meu contato, me mandou mensagem e ligou na sexta à noite e no sábado de manhã, pressionando para acelerar o processo. Inclusive (ele) teve um encontro com a empresa na sexta à noite e (disse) que a gente precisava fazer o embarque ainda naquela semana.

Como foi o contato com o seu irmão, o deputado Luis Miranda, naquele momento? Qual a informação que o senhor queria levar adiante?

Devido à falha de documentação, à inconsistência do contrato e também às pressões, a equipe (do Ministério da Saúde) se sentiu desconfortável. Eu como tenho um irmão, (o deputado) Luis Miranda, ao qual eu confio muito, relatei toda a situação pra ele. E passamos a situação para a autoridade superior. Ele me convidou se eu estava disposto a levar isso ao presidente Bolsonaro.

E como foi esse encontro com o presidente Jair Bolsonaro?

Eu apresentei toda a documentação, o contrato que foi assinado, as pressões que estavam acontecendo internamente no ministério, e a gente levou até a casa do presidente (no Palácio da Alvorada). Conversamos com ele, mostramos todas as documentações, as pressões, e ele ficou de, após a reunião, falar com o chefe da Polícia Federal para investigar. Isso foi no dia 20 de março.

Qual documentação foi apresentada ao presidente?

O contrato que foi assinado, alguma pressão que eu sofri e divergências do contrato. Alguns documentos de reportagens sobre a gestão da empresa (Precisa Medicamentos) de outros processos.

Como foi a reação de Bolsonaro?

Ele disse que realmente estava muito estranha a situação. Ele ficou, posso dizer, não sei, surpreso. Disse que confia no pessoal do Ministério e não tinha conhecimento de tudo, de detalhe, e que ia investigar.

Por que decidiram levar esse caso ao presidente?

Ele é o chefe do Poder Executivo e detém conhecimento de todas as situações que estão passando no governo, e ao qual cabe a responsabilidade de verificar todas as inconsistências, às vezes que não chegam até ele.

O que o senhor explicou exatamente ao presidente sobre as supostas irregularidades?

Toda a documentação é fornecida pela empresa, são documentos a respeito da carga, documentos técnicos, de certificados, estudos da vacina, a gente recebe esse documento pela empresa. A invoice é similar a uma nota fiscal no Brasil, um documento que demonstra aos órgãos responsáveis que foi feita uma compra, uma venda ou qualquer tipo de transação internacional importada. O que foi apresentada pela empresa foi essa invoice.

O que te chamou atenção nesse “invoice”? Foi a questão do pagamento 100% antecipado?

A gente não faz parte de licitação. Somos da área de execução, a ponta para que a vacina chegue ao país. É passado o contrato para a nossa área para a execução. O que a gente faz é verificar o que diz o contrato e a documentação que a empresa apresentou para a gente seguir o contrato. Nesses levantamentos que a gente fez, sobre a questão de pagamento, a quantidade de doses, a questão da empresa que estava divergente, a gente verificou essas inconsistências.

Essa terceira empresa que apareceu no processo, divergindo do contrato, traria prejuízo ao país?

Sim, há questão de prejuízo por envolver o recebimento de uma quantidade menor, num valor altíssimo, fora do acordado, essa empresa é totalmente divergente do contrato, algo que não é legal, porque se você tem um contrato assinado com um fornecedor quem tem que te fornecer é aquele fornecedor, não uma empresa terceira que você desconhece, que não assinou.

O que foi mais estranho no processo todo para o senhor?

Achei estranho a questão da pressão, porque a gente é uma área que é a ponta final. A gente está acostumado a lidar com urgências, com pressões, mas elas foram muito fora do comum. Fora essa questão da documentação não estar completa, tudo isso. A gente está acostumado a ter pressão, mas isso foi muito além.

Como era essa pressão?

Acontecia muita reunião, muita ligação, inclusive na sexta-feira à noite e final de semana para perguntar: “E aí, a empresa mandou documentação?”, “como é que tá?”, “cobra a empresa”.

O coronel Alex Lial, coordenador da área, também pressionava?

Ele sempre perguntava, como está a Covaxin, como está a importação, tem mensagem de texto dizendo que era prioridade máxima. Ele sempre questionava a gente para saber se está tudo ok. Era constante.

Qual foi a sua preocupação como servidor que te levou a sentir desconfortável para levar isso até o presidente?

Como havia muita inconsistência, bastante pressão, isso gerou suspeita, né, insegurança. Nos baseamos no contrato, que é lei, e ele estava divergente. Então falei com meu irmão para verificar se estava legal.

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