Conforme noticiado por jornais
uruguaios, faleceu hoje o escritor e jornalista Eduardo Galeano, aos 74
anos de idade, em Montevidéu. Na sexta-feira passada o escritor fora
internado em hospital daquela Capital, em virtude de um câncer no
pulmão.
Galeano bem conhecia a vida
sofrida de seu povo. Foi operário de fábrica, desenhista, pintor,
datilógrafo e também trabalhou como caixa em comércios. Após exercitar
todas essas visões de mundo sob a ótica dos menos favorecidos,
tornou-se, como jornalista e escritor, um grande líder da esquerda
latino-americana. Em 1971, publica o livro “As Veias Abertas da América Latina”, havido como um clássico da literatura política da americana e escrito quando o Galeano contava apenas com 31 anos de idade.
Internacionalmente conhecido, suas obras foram traduzidas para dezenas de idiomas.
Em
2009, durante a Quinta Cúpula das Américas, o presidente da Venezuela,
Hugo Chávez, deu a Barack Obama uma cópia desta obra de Galeano que fora
proibida e censurada pelas ditaduras do Uruguai, Argentina e Chile. Na
ocasião, o livro passou a figurar entre os títulos mais vendidos em todo
o mundo.
Em 2012, Galeano é grandemente aclamado nas redes sociais em virtude de uma entrevista na qual ele lê um de seus textos: O Direito ao Delírio e é com este texto que despedimo-nos do escritor.
Que
as nossas almas sigam irmanadas na utopia de um mundo cuja maior
loucura seja a dignidade de todos os homens. Cuja alegria de uns não
esteja alicerçada na desgraça de inúmeros outros. Cuja esperança
sobreviva ao caos. Onde o pão nosso de cada dia esteja à mesa recheado
de sonho e poesia.
Eduardo Galeano: quatro frases que fazem o nariz do Pinóquio crescer
A saúde do mundo está feito um caco. ‘Somos todos responsáveis’,
clamam as vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos
todos responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos
tecnocratas do meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os
experts geram experts e mais experts que se ocupam de envolver o tema
com o papel celofane da ambiguidade.
Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao ‘sacrifício de
todos’ nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais
que ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras – inundação que ameaça
se converter em uma catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada
de ozônio – não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial
asfixia a realidade para outorgar impunidade à sociedade de consumo, que
é imposta como modelo em nome do desenvolvimento, e às grandes empresas
que tiram proveito dele. Mas, as estatísticas confessam.. Os dados
ocultos sob o palavreado revelam que 20% da humanidade comete 80% das
agressões contra a natureza, crime que os assassinos chamam de suicídio,
e é a humanidade inteira que paga as consequências da degradação da
terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do
enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais
não-renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da
Noruega, comprovou recentemente que, se os 7 bilhões de habitantes do
planeta consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente,
"faltariam 10 planetas como o nosso para satisfazerem todas as suas
necessidades." Uma experiência impossível.
Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no
Primeiro Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e
felizes, não deveriam ser só processados por calote. Não estão só
pegando em nosso pé, não: esses governantes estão, além disso, cometendo
o delito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se
oferece como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação
da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso corpo, está envenenando
nossa alma e está deixando-nos sem mundo.
2 – É verde aquilo que se pinta de verde.
Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor
verde, e o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia
em cada página de seus informes e tingindo de verde seus empréstimos.
"Nas condições de nossos empréstimos há normas ambientais estritas",
esclarece o presidente da suprema instituição bancária do mundo. Somos
todos ecologistas, até que alguma medida concreta limite a liberdade de
contaminação.
Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa
do meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas
sacaram, subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua
verdade em termos que poderiam ser resumidos assim: "os defensores da
natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotarem o
desenvolvimento econômico e a espantarem o investimento estrangeiro." O
Banco Mundial, ao contrário, é o principal promotor da riqueza, do
desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez, por reunir tantas
virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado Fundo para o
Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de pouco
dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para
financiar projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável,
conclusão inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o
Banco Mundial está admitindo, de fato, que todos os seus demais projetos
fazem um fraco favor ao meio-ambiente.
O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se
chama Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em
Washington. Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no
prato em que come. Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro
Mundo, o Banco Mundial governa nossos escravizados países que, a título
de serviço da dívida, pagam a seus credores externos 250 mil dólares
por minuto, e lhes impõe sua política econômica, em função do dinheiro
que concede ou promete. A divinização do mercado, que compra cada vez
menos e paga cada vez pior, permite abarrotar de mágicas bugigangas as
grandes cidades do sul do mundo, drogadas pela religião do consumo,
enquanto os campos se esgotam, poluem-se as águas que os alimentam, e
uma crosta seca cobre os desertos que antes foram bosques.
3 – Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.
Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um
cavalheiro: o bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas
vítimas… As empresas gigantes da indústria química, petroleira e
automobilística pagaram boa parte dos gastos da Eco 92: a conferência
internacional que se ocupou, no Rio de Janeiro, da agonia do planeta. E
essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula da Terra, não condenou as
transnacionais que produzem contaminação e vivem dela, e nem sequer
pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que
torna possível a venda de veneno.
No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria
química se veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos
maiores laboratórios do mundo que, para ajudarem a natureza, estão
inventando novos cultivos biotecnológicos. Mas, esses desvelos
científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às pragas
sem ajuda química, mas sim buscam novas plantas capazes de resistir aos
praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10
maiores empresas do mundo produtoras de sementes, seis fabricam
pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). A
indústria química não tem tendências masoquistas.
A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na
denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia
neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da
injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o
silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que
podem pagar por eles. Chico Mendes, trabalhador da borracha, tombou
assassinado em fins de 1988, na Amazônia brasileira, por acreditar no
que acreditava: que a militância ecológica não pode divorciar-se da luta
social. Chico acreditava que a floresta amazônica não será salva
enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil. Cinco anos depois
do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100
trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela
terra, e calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às
cidades deixando as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada
país, a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes
cidades latino-americanas, inchadas até arrebentarem pela incessante
invasão de exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma
catástrofe que não se pode entender nem alterar dentro dos limites da
ecologia, surda ante o clamor social e cega ante o compromisso político.
4 – A natureza está fora de nós.
Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza.
Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter
acrescentado, por exemplo: "Honrarás a natureza, da qual tu és parte."
Mas, isso não lhe ocorreu. Há cinco séculos, quando a América foi
aprisionada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu
ecologia com idolatria. A comunhão com a natureza era pecado. E merecia
castigo. Segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam
cascas para se vestirem jamais esfolavam o tronco inteiro, para não
aniquilarem a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos
diversos e com períodos de descanso, para não cansarem a terra. A
civilização, que vinha impor os devastadores monocultivos de exportação,
não podia entender as culturas integradas à natureza, e as confundiu
com a vocação demoníaca ou com a ignorância. Para a civilização que diz
ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que tinha que ser
domada e castigada para que funcionasse como uma máquina, posta a nosso
serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, nos
devia escravidão. Muito recentemente, inteiramo-nos de que a natureza se
cansa, como nós, seus filhos, e sabemos que, tal como nós, pode morrer
assassinada. Já não se fala de submeter a natureza. Agora, até os seus
verdugos dizem que é necessário protegê-la. Mas, num ou noutro caso,
natureza submetida e natureza protegida, ela está fora de nós. A
civilização, que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o
desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a
natureza com a paisagem, enquanto o mundo, labirinto sem centro,
dedica-se a romper seu próprio céu.
Eduardo Galeano era escritor e jornalista uruguaio
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