A crítica foi pelas redes sociais, mas a resposta não veio na caixa de
comentários. Dois jovens, um de São Paulo e outro do Ceará, foram
buscados em casa e levados à delegacia após se queixarem da Polícia
Militar de suas cidades. A justificativa: desacato a autoridade.
O caso mais recente aconteceu nesta quinta (30), em Pedregulho, uma
cidadezinha de pouco mais de 15 mil habitantes a 437 km de São Paulo.
Uma agência da Caixa foi assaltada por criminosos na madrugada do mesmo
dia. Os bandidos, fortemente armados, trocaram tiros com os policiais
militares e fugiram, em um tipo de ação recorrente na região.
O jogador de basquete Wesley Venancio, 19, acordou com o barulho e
depois escreveu um post criticando a atuação da polícia, afirmando que
os PMs ficaram com "medo" dos criminosos. "Pra pegar os filhos dos
outros e bater na cara e outras coisas eles são bons. Aí chega o crime
organizado aqui e leva um banco, e os PMs sumiram, cadê? Correu",
escreveu o rapaz.
Na manhã seguinte, PMs foram buscar o rapaz em casa e o levaram à
delegacia da cidade para registrar boletim de ocorrência por desacato a
autoridade. A reportagem apurou com moradores da cidade que o rapaz foi
levado na parte de trás da viatura.
O caso veio à tona porque os próprios policiais postaram uma foto do
rapaz de costas, entrando na delegacia com as mãos para trás, ao lado de
um PM fardado.
O tenente Ailton Ramos justificou a ação dos policiais na madrugada,
afirmando que os bandidos estavam armados com fuzis e que os PMs apenas "
deixaram o local pra se abrigarem e aguardar o apoio".
"Toda ação tem reação. Este rapaz aí publicou asneiras em sua página no
Facebook, foi detido pelos policiais militares cabo Rogerio e soldado
Bolonha, logo, conduzido a Delegacia de Pedregulho pra registro de
ocorrência de desacato", escreveu o oficial.
A página de comentários tem várias mensagens de apoio aos policiais pela atitude.
EM CASA
A Folha apurou que, devido à repercussão do caso, o jovem tem evitado
sair de casa e faltado aos treinos de basquete. Em sua página do
Facebook, ele apagou o post e escreveu "todo mundo erra um dia".
Questionada sobre a atuação dos PMs, a corporação afirmou que abriu
investigação para apurar o motivo da condução do rapaz ao distrito.
Sobre o post feito pelo policial no Facebook, a corporação afirmou: "A
Polícia Militar esclarece que todos os policiais militares, dentro de
sua liberdade de expressão, podem postar o conteúdo que bem entenderem
nas redes sociais, sendo, contudo, os responsáveis por suas declarações e
atitudes".
O comunicado da PM afirmou ainda que "a opinião de um integrante da
Polícia Militar não expressa, obrigatoriamente, a opinião da
Instituição, tampouco a realidade dos fatos".
CEARÁ
O outro caso aconteceu em Itatira (176 km de Fortaleza). Um adolescente
de 17 anos foi acordado à tarde de um cochilo em casa por uma dupla de
policiais. A ordem era vestir uma camisa e entrar no carro dos PMs.
Sem os pais, sentado no banco de trás, o jovem foi levado por 16 km
pelos policiais até um posto da PM e, de lá, com um conselheiro tutelar,
viajou para outra cidade, onde é levado para a delegacia. O motivo: um
dia antes, postou em seu perfil no Facebook críticas genéricas à polícia
de sua cidade, Itatira (176 km de Fortaleza).
O episódio, ocorrido no dia 22, provocou revolta nos pais e no garoto
–que cogitava justamente prestar concurso para ser policial.
O caso foi registrado como desacato pelos policiais. O post, que foi
deletado pelo adolescente assim que os policiais bateram em sua porta,
dizia assim, segundo o Ministério Público Estadual, que acompanha o
caso: "Aqui em Itatira os roubos acontecem e a polícia não faz nada, e
quando faz é para ajudar bandido".
'TRAZ A CARRETA'
Para a OAB Ceará, houve excesso da parte dos policiais. "O desacato só
pode ser caracterizado pessoalmente", afirmou o advogado Renato Torres,
membro da Comissão de Direito da tecnologia da Ordem. Se confirmada a
versão do adolescente, diz, há espaço para um processo administrativo
contra os PMs.
O promotor Francisco Lucídio de Queiroz Júnior, que acompanha o caso,
disse ver irregularidade no fato de policiais terem conduzido o garoto
sem a presença dos responsáveis. Já quanto ao comentário, em sua
opinião, o texto postado no Facebook poderia, sim, configurar ato
equivalente a calúnia. "Ele atribuiu aos policiais a coautoria de atos
criminosos".
O pai do adolescente discorda. "Se forem prender todo mundo que critica a
polícia, é melhor trazer logo uma carreta". A família pretende levar o
caso à Secretaria de Direitos Humanos do Estado.
Depois do episódio, o adolescente disse à Folha que desistiu do sonho de
prestar concurso para se tornar um policial militar –ele tem tio e
primo sargentos. "Eles não prendem bandido, mas cidadão de bem eles
prendem".
Ainda segundo o garoto, no trajeto até o posto da PM, sozinho com os policiais, ele diz ter sido xingado pelos PMs.
Nem policiais nem os conselheiros tutelares quiseram falar com a
reportagem. A Controladoria-Geral de Disciplina dos órgãos de segurança
Publica e Sistema Carcerário do Ceará, responsável pela conduta de
servidores, em nota, afirmou que instaurou uma investigação preliminar
para apurar a possibilidade de "conduta de policiais de Itatira que
possa configurar abuso de autoridade".
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará, também em
nota, confirmou a registro por desacato, sem dar detalhes, e afirmou que
há canais para reclamações em caso de excessos na conduta de policiais.
Fonte: Artur Rodrigues e Renato Sousa/Folha UOL